“Eu posso me denominar um treinador sem memória. Não tenho museu em casa, não tenho lugar para memórias. Gosto de apagar e ir para o próximo. E os jogadores que quiserem vir comigo vão entender que eu sou agradecido, que há gratidão pelo que aconteceu até agora, mas ficou para trás”.
Com essa declaração, Filipe Luís mostrou que a fome por mais títulos continua insaciável. E não são poucos em seu currículo rubro-negro. Foi campeão 10 vezes como jogador e, neste domingo, após vitória marcante sobre o Atlético-MG em Belo Horizonte, deu sua primeira volta olímpica como treinador.
As palavras soam também como um incentivo ao grupo de atletas, e elas têm muito valor. Mas Filipe Luís terá que refrescar, sim, sua memória e revisitar essa conquista. Ela é muito marcante e poderá servir de exemplo para momentos de pouca inspiração e de dificuldades.
Filipe disse que não herdou um caos e agradeceu algumas vezes a Tite em suas entrevistas coletivas, porém o trabalho dele é muito autoral e transformador. Ele devolveu o Flamengo ao seu DNA: disse que ia correr riscos, atacar sempre com três na área, e o fez.
A transformação
Fiel às suas convicções, Filipe Luís avisou que deixaria jogadores bravos, e é possível que isso tenha acontecido. Titulares com Tite, Varela e Fabrício Bruno foram sacados no primeiro jogo. Se Fabrício eventualmente tenha ficado chateado, é compreensível. Jogava muito bem e vinha sendo convocado pela seleção brasileira.
A questão é que a entrada de Léo Ortiz foi muito certeira, e o Flamengo, além de um bom defensor, ganhou um construtor de jogo. Na direita, outra mexida fundamental: Wesley passou a viver seu melhor momento como profissional a partir da chegada de Filipe, e a parceria com Gerson tem rendido em jogos em que o Flamengo ataca ou é atacado.
Além disso, apostou no desacreditado Gabigol, que decidiu a Copa do Brasil no primeiro jogo.
DNA
Na estreia, contra o Corinthians, o placar foi de 1 a 0, mas a atuação foi para mais. Com 19 finalizações, o time poderia ter matado a semifinal da Copa do Brasil ali. O time perdeu inúmeras chances, e os paulistas saíram do Maracanã no lucro.
“Ganhar, ganhar e ganhar”
No vídeo de bastidores divulgado pelo Flamengo depois da vitória por 2 a 0 sobre o Bahia, Filipe Luís foi flagrado repetindo o verbo ganhar 10 vezes na preleção.
Pois ele tem conseguido fazer valer seu mantra. Em apenas nove partidas, venceu seis, empatou duas e perdeu apenas uma.
Em todas, ele jogou para ganhar. Na única derrota, para o Fluminense, o Flamengo teve incrível volume no primeiro tempo, mas a entrada de uma peça tricolor, o colombiano Jhon Arias, acabou ajudando o Flu a ser efetivo, coisa que o Fla não foi.
Atacou também demais o Internacional no Beira-Rio e esteve perto de ganhar. Cedeu o empate no fim porque continuou buscando o ataque, e o erro de Evertton Araújo é um exemplo claro disso: o garoto conduzia a bola em direção à área adversária, mas foi fominha.
Sobre erros crassos individuais, aliás, Filipe conviveu com esse e com um de Léo Ortiz na primeira partida da final, contudo evitou expor o pupilos. Tratou de citar lances de outros atletas que não terminaram em gol para absolvê-los. Os dois, aliás, fizeram bons jogos.
Variação de jogo e prudência quando necessário
Filipe Luís utilizou o esquema com três zagueiros duas vezes pelo Flamengo. A primeira foi circunstancial, na partida de volta da semifinal com o Corinthians. Torcedores, analistas e até o autor desse texto estranharam quando Filipe, ao ver Bruno Henrique expulso aos 27 minutos, optou por Fabrício Bruno no lugar de Gabigol. Ele estava certo. Preencheu a frente da área e ao mesmo tempo tirou a amplitude dos paulistas, que abusavam no jogo de cruzamentos pelas pontas.
O jogo do penta e as cartadas de mestre
Filipe Luís estava na dúvida entre começar com Fabrício Bruno num 3-5-2, ou jogar no 4-4-2 (ou um 4-2-3-1 dependendo da ótica de quem vê). Preferiu a segunda opção e teve dificuldades.
O Galo teve mais volume, porém as principais chances foram do Flamengo. Gerson, Arrascaeta e Evertton Araújo estiveram perto de marcar. Atrás, Rossi quase entregou para Paulinho ao dificultar num passe curto errado para Pulgar, mas o pior não aconteceu.
Rossi, aliás, defendera bem um chute de Hulk, tanto ao espalmar quanto ao de atirar de carrinho para afastar o perigo.
Mas a etapa deixou algo claro: com o Galo muito exposto, o Flamengo precisava de velocidade. Filipe leu bem e, no intervalo, sacou Gabigol e colocou Bruno Henrique.
O Flamengo ainda levou alguma pressão do Galo, mas Bruno Henrique entrou como uma flecha. Esteve perto de marcar duas vezes em duas escapadas pela esquerda.
As coisas ficaram ainda melhores quando Fabrício Bruno entrou no lugar de Arrascaeta. O Flamengo protegeu seus lados, e Fabrício entrou bem demais.
E o reforço do sistema defensivo liberou Wesley, que puxou dois contra-ataques desperdiçados inacreditavelmente pelo Flamengo. Em um deles, Michael perdeu por puro cansaço e saiu logo depois.
Estrela e compromisso com o DNA
Se foi mais conservador na escalação inicial ao não repetir o 4-3-3 do Maracanã, Filipe manteve-se fiel ao compromisso de atacar.
No primeiro tempo, foram apenas seis finalizações. No segundo, apesar de ter em mãos o empate que lhe bastava, não abdicou do ataque. Foram 12 finalizações na etapa, e uma infinidade de gols perdidos.
A finalização mais importante do jogo veio para mostrar que, além de um técnico muito promissor, Filipe tem estrela. Não, não foi sorte. O homem a entrar era Plata, mas tinha que ser logo ele a fazer o gol do título? E ainda mais um golaço.
Pois foi assim: a jogada teve como protagonistas Bruno Henrique, que mudou o jogo, e Plata, o escolhido por BH para decretar o penta.
Com um passe de trivela, Bruno acionou o equatoriano, que também deu lindo drible e finalizou com o pé menos forte lindamente. Um golaço de campeão. De pentacampeão.
Nos acréscimos, o Flamengo ainda teve mais chances, com David Luiz e Wesley, mas o 1 a 0 teve sabor de goleada.
Ele mesmo não queria “ganhar, ganhar e ganhar”?. Pois ele ganhou o jogo e ganhou o campeonato.